domingo, 28 de junho de 2015

Uma Jam em Stonewall

I
Hoje faz 46 anos que umas sapatão, travesti e bicha resolveram não aceitar serem presos por serem quem são. O bafão aconteceu lá em Nova York. Na época os "atos homossexuais” eram proibidos por lá e a polícia ficava vigiando o cu da galera. Numa dessas invadiram o bar STONEWALL INN mas aí uma sapatão começou a revidar, as travestis do recinto foram ajudar, as bichas começaram a gritar e foi o maior barraco. Pouco tempo depois começaram as marchas do orgulho LGBT nos Estados Unidos e depois do mundo inteiro.
#valeumigas

II
Um dia desses fui fazer uma aula em um lugar novo onde estou temporariamente vivendo. A cidade é média, no interior e muito tradicional. Fui andando, não era muito longe. No caminho encontrei pichações de ódio contra travestis. Fiquei com medo. Essa cidade é muito violenta com LGBTs. Quase chegando no lugar um homem começou a me seguir e a fazer perguntas incômodas e violentas. Cheguei ofegante no local e perguntei para qualquer pessoa: 
     -Agora é a aula de Contato Improvisação?
     -Que? não, é Kung Fu.
Sabia que a porra da aula era de Contato Improvisação, mas não queria mais nada naquela noite, nada. Não queria ver gente na minha frente. Voltei pra casa com ódio do mundo. Me senti péssimo. Porque isso? Fiquei pensando em quantas outras pessoas passam o que eu passei. Essa sensação é péssima. Muitas vezes me sinto como aquelas sapas e bichas de Stonewall: revoltadas por terem o cu vigiado, as genitais investigadas. 
Por sorte voltei ao mesmo lugar alguns dias depois e finalmente dancei. Mas a minha sorte não parou por aí, as pessoas me chamaram pelo meu nome e me trataram no masculino como gosto de ser tratado. Dancei e continuo dançando. Me senti muito feliz e grato à vida. Fui bem recebido, bem tratado, respeitado. Boas danças, tempo bom.

III
Sabe, tem um monte de gente sofrendo coisas horríveis só por serem quem são. Essa violência atua em camadas, é cruel. Por vezes não consigo me explicar. Muitas  pessoas não tem idéia de como é a vida de pessoas transexuais, dá preguiça de explicar, tem que desenhar, e repetir, repetir, repetir. Faço parte de uma geração de transexuais pioneiros que estão se declarando Trans ainda jovens e vivendo fora do armário. É tudo novo para todo mundo. As pessoas se espantam com nossos corpos como se nossa existência fosse um acontecimento, e de fato é. Porém todo esse pioneirismo cansa e tem uma alto preço, eu só consigo lidar em sã consciência se praticar Contato Improvisação.
O mundo gira, as pessoas mudam e devo admitir que conquisto cada vez mais espaço. Quando uma pessoa me chama pelo pronome certo, mesmo não fazendo mais que a obrigação, lembro que a vida já foi diferente, lembro do armário, como era triste lá dentro, feio e sem graça. As vezes sou violento e não tenho a menor paciência em “dar palestra” para desconhecidos ou dizer como me sinto porque isso me toma muita energia e por mais sincero que seja essa comunicação muitas vezes não chega na outra pessoa. 
Tenho uma teoria que é assim: nós temos pouca referências trans e isso dificulta a comunicação ( e a vida). Vamos lá, quantos amigos trans você tem? Quantos professores Trans você já teve? Médica travesti, alguém pode me indicar por favor? Pois é viado, é barra. Pra piorar o Brasil é o país que mais mata transexual no mundo, aliás 40% dos homicídios de ódio no planeta contra a população trans rola aqui no Brasil. 
Mas olha, cada dia que passa tenho mais orgulho.Não tenho orgulho desses números horríveis, todos inscritos no nosso corpo, mas tenho orgulho porque sigo em frente e não volto pro armário nem por um milhão de dólares. Tenho orgulho porque acordo todos os dias e levanto da cama, tenho orgulho porque mesmo violentado em muitos níveis sigo dançando. Tenho orgulho porque mesmo não tendo banheiro/vestiário pra mim me visto e faço minhas necessidades, as vezes na rua, mas faço. Mijo e mijo em pé. Tenho orgulho por ser uma referência para crianças machinhas que me olham na rua com tanta admiração, carinho e curiosidade. Tenho orgulho porque estou vivo em um país tão religioso no sentido fundamentalista crazy. Tenho orgulho porque saí do armário com pouquíssimas referências. Tenho orgulho de ocupar os espaços públicos mesmo sofrendo agressões. Tenho orgulho porque tive coragem de dizer a minha família religiosa aos 22 anos que sou sapatão. Tenho orgulho de praticar Contato Improvisação há três anos mesmo não me sentindo confortável em algumas situações. Tenho orgulho porque tive a coragem de mudar de nome. Tenho orgulho dos meus iguais que vivem em situações muito mais adversas que eu. Posso dizer que as minhas danças Transformaram a vergonha em orgulho. Portanto me sinto grato. Agradeço a todas as pessoas que dançaram comigo até hoje e as muitas que ainda vão dançar. Agradeço as pessoas que se sensibilizam com a minha causa, escritos e performances, aos corpos que se dispõe a aprender com as diferenças, xs professores, as alunas e os alunos, esses corpos moventes, todos lindos. O meu intuito é dançar até morrer, mas não é qualquer dança, as nossas espirais podem abrir ainda mais para a diversidade.

IV
Quero dizer com o corpo e com as palavras que existe amor em SP e no mundo inteiro. Tem ódio mas tem amor. Mesmo com muitas limitações, dos corpos e das palavras, estou encontrando acolhimento, comigo mesmo e com outras pessoas também.  

Com orgulho e gratidão, Ariel. 
28 de Junho, dia do orgulho LGBT