quinta-feira, 28 de maio de 2015

briga de espada



 Costumo usar esse espaço para falar sobre minhas experiência com o Contato Improvisação, mas recentemente tive uma dança Transformadora.  Um dos meus interesses no CI é desconstruir o gênero, por isso quero contar de uma dança que tive longe das Jams, mas que nunca teria acontecido se não fosse um contatero.
Resolvi me montar e performar em um evento que ajudo a construir  de forma colaborativa com outres sapatão, o Isoporzinho das Sapatão (https://goo.gl/12GSb9). Pra quem não sabe, esse é um dos únicos eventos sapatônicos da cidade do Rio de Janeiro. Bem, fui de cinta pau, uma calça justa preta, uma camiseta da #sapatãodamoda (https://goo.gl/CzqXbC) e um cachecol arco íris, sabia que ia tirar a camiseta em algum momento. Alias, esse ato não é qualquer ato. Quando faço isso tudo muda, os corpos ao redor mudam de posição e já começam outras danças, sou percebido de forma diferente, os olhares, os toques, quem fica longe e quem fica perto, as conversas, as pausas e os movimentos, por um momento, tudo fica suspenso como se alguém ousasse questionar o iquestionável, como duvidar de deus. 
 Todos os dias, todos os dias mesmo, eu recebo  olhares procurando minhas genitais. Quando eu digo meu nome, e que quero ser tratado no masculino os olhares escorregam quase que automaticamente para o meu peito e buceta. Os olhares procuram, investigam, furam minha roupa. Dizem que os genitais são partes íntimas, é o que dizem, mas se você acha isso, senta pra não cair, isso não é igual pra todo mundo. Sabe por que? Porquê quando as pessoas não conseguem te encaixotar em mulher de buceta ou homem com pau, já era, a cabeça vai bugar e os olhares vão se dar o direito de invadir, as perguntas indiscretas aparecem sem pudor como se você estivesse 100% disponível à curiosidade alheia, que te trata muitas vezes como a bizarrice do circo. 
 Bem, mas quero voltar a minha dança maravilhosa.
 Estava dançando, já era madrugada na Praça Tiradentes, o som estava bombando e as sapatão quebrando até o chão. Já estava no auge, muito bêbado, sem camiseta, de pau de plástico pra fora e dançando, ora sozinho ora com outras pessoas. Havia muitas pessoas Trans, adoro. Gosto de ver outros corpos trans em espaços público, isso é raro. Até que um grupo de caminhada decidida se aproxima do nosso, uma pessoa de passo firme lidera os trabalhos, seu passo é firme como se estivesse indo para uma guerra. Nenhum movimento dessa guerreira passava desapercebido. Ela chega e redistribui todos os outros corpos naquele espaço. Ela modificou todo o ambiente, tudo ficou, de repente com outra vibração.Os nossos corpos, o meu e o da guerreira, foram se aproximando por uma atração muito do momento que era ao mesmo tempo sofisticada e intensa. Começamos a dançar uma música que pelo visto ela gosta e com certeza foi sugerida por sua presença no recinto. Era madrugada e estava frio, mas o fogo que eu sinto quando estou  sem camiseta na rua vem da Terra, vem de baixo pra cima, por isso o frio não me atingia em nada, estava fervendo e parecia que ela também. Enquanto isso o funk rolando e nós ali de corpo inteiro gritando “É MINHA, A PORRA DA BUCETA È MINHA”, sem um pingo de pudor a guerreira dançarina tirou toda a roupa em praça pública, eu aceitei a sugestão e também tirei o resto da roupa que tinha. Dançamos, nos esfregamos, e de corpo inteiro ocupamos aquela praça, todas e todos nós. Aquela pessoa me desafiava a cada movimento, por um momento achei que estava dançando com alguém que não tivesse medo de nada, e por um tempo, talvez segundos dancei sem medo também. Me senti inteiro e ali, na praça pública, onde não sou bem vindo, dancei nu, celebrei minha vida, meu corpo. Lembrei que tenho lugar no mundo- pelo menos ali foi um lugar- por um momento, pleno.    
Sabe, as vezes preciso fazer isso, estar com meu corpo nu nos espaços públicos. É uma questão de cura, é o que eu posso fazer por mim, faço pra me salvar, faço porque quero viver. Todos os dias recebo olhares investigativos, punitivos, perguntas invasivas, sou expulso dos banheiros, qualquer formulário, ou pequenas burocracias do cotidiano vira uma tragédia grega. Ser Trans por aqui é barra. No fim das contas, eu só tenho eu, e eu sou corpo e corpo inteiro. Eu não sou uma aberração, mas parece que sou percebido como, quando tiro a roupa fica explícito, seja o que for pra quem vê, mas fica lá, presente. Tudo fica mais físico. 
Valete de paus, Rainha de paus, briga de espada, briga de aranha, eu pelado, ela pelada, e os nossos migs ali, em transe, fervendo, como em um ritual pagão convocando dias melhores para nossos iguais. Lembrando para nós mesmo que existimos, que não estamos sós e que queremos nossas danças em espaços públicos. É bom ter experiências como essa, porque eu estou cansado dos cantos, de me esconder, de me tapar, de fugir, de chorar, não dá, isso tudo fica no corpo passeando sem lugar. Nossos corpos estão sedentos por praça pública, por visibilidade, e por celebração. Somos carne, osso, pele e genital também, mas somos mais, bem mais.
As vezes, quando tudo vai mal, quando me sinto sem lugar no mundo, penso: Ariel tem local, é aqui, comigo, nesse corpo.
Querida pessoa Trans, que bom te ver viva! Nossas danças não cabem em armário nenhum e a melhor pista é a praça.