terça-feira, 29 de setembro de 2015

aqui não tem certo, não tem errado


O SUOR
Um dia acordei suado. Era verão e fazia 50 graus. Sim, é isso mesmo.
Nesse verão comecei a estar o mais pelado possível.
Comecei dentro do meu quarto. Aí depois pensei: "ah, vou ao banheiro". aí ia pelado.
Aí pensei: "vou trabalhar de porta aberta, tá muito calor.” 
Morava com um cara(cis) e uma mulher (cis). Comecei a andar de cueca como meu companheiro de casa o fazia.
Pensava: estou EXATAMENTE com a mesma roupa e pago aluguel, tipo, é isso.
Comecei tomar suco na varanda que dava pra rua. Os vizinhos do lado apareciam e eu não me escondia. 
As crianças brincavam na rua, eu não me escondia. Ficava na varanda tentando trabalhar/existir com aquele calor. 
As vezes, ia em manifestações feministas ficava bêbado e sem camiseta na rua. Adoro. 
Mas voltando…teve um dia que acordei e estava 50 graus. Tinha uma workshop MANEIRÍSSIMO que misturava Contato Improvisação AND PISCINA.
Pode falar, contato improvisação no verão é uó. Você que não sabe que eu tô falando vem comigo: imagina uma sala com vários corpos necessariamente suados rolando no chão e encostando entre si, dançando junto um bagulho que chama CONTATO IMPROVISAÇÃO, 40 graus etc etc etc. Visualizou? Sentiu o cheirinho delícia?
Ou seja, quebrei o cofrinho (eu e todas, né) e fomos nesse workshop.
Agora, não tava nenhum um pouco disposto a vestir biquini. A parte de cima do biquini me é inútil, na verdade só me atrapalha. Aquele fio que fica debaixo do suvaco me machuca, além do mais esses 3 cm quadrado de pano só serve pra aumentar as chances de câncer na vida.  Pra que serve? Deixa nossos peitos brancos, sem a energia do sol, condicionado a espaços privados por essa parte do corpo ser “obscena” demais. ME POUPE! 
Aquela manhã tava quente demais pra ATURAR biquini, sério, não dava, não tava dando, ficou puxado.
Já tinha pago, pensei: vou agir naturalmente. 

O ACONTECIDO
Aula de contato improvisação na piscina, no verão.  Nada de novo debaixo de um sol de cinquenta graus. 
14h da tarde
algumas pessoas ficaram de sunga e outras de biquíni
...silêncio.
Mas...
...para tudo.
Algo aconteceu.
O mal estar da civilização tomou conta dos contateros.
A professora olhou pra mim e disse: NÃO. 
O produtor da oficina disse que estava tudo ótimo, mas os vizinhos não iam achar legal.
Espera, parece que a namorada do dono do espaço também estava presente.
putz
Imagina, queremos voltar aqui e fazer outros eventos, outras oficinas, workshop.
E agora?
Não teve jeito: você vai ter que sair ou vestir (a tal) parte de cima.
Me pergunto: o que tá errado? É a roupa, o corpo, a genital ou a combinação de todos esses fatores?
"Tá tudo bem, dentro de casa está tudo bem, não temos problema com a nudez"
Entendi, mas quem está nu e quem não está? Além do mais, não é todo mundo que curte um cárcere privado em dias ensolarados, né.
Um corpo nu, outros com calor.
Um peito "de fora", outros com calor.
Um peito chocando, outros com calor.
UmAs com "parte de cima", outrOs com calor. 
E eu. 
"As pessoas ficam chocadas"
Essa eu entendo, eu mesmo fiquei em choque por meses.
"Você vai ter que colocar a (tal) parte de cima"
Coloquei
"Menos é mais"
Não me senti bem e antes de começar a chorar fui embora.
"Aqui não tem certo, não tem errado"
Ah…ufa
Existem corpos à margem dos nossos linóleos, dançar nossas frases clichês é um desafio urgente.
Não existe corpo errado, existe #transvivo. 

A CORAGEM 
Olha, não é fácil ser expulso, ser removido. Por mais que lá no fundo você já trabalhasse com essa possibilidade. 
Fiquei mais triste ainda quando pensei que a situação era muito maior: não era pessoal, era política.
A verdade é que pessoas trans não são bem vindas em piscinas e praias. Nossos corpos está no entre do apartheid de sungas e biquinis.
O direito a nudez é distribuído pelo próprio patriarcado e o confinamento é o que tem pra hoje…………..ah, c jura  
“Em casa não tem problema” 
Sabe quem diz essa frase? Pessoas próximas em várias situações. 
E será que pode mesmo? Se pode ou não você não sabe, né querida, o que você está falando é que AQUI NÃO PODE, COMIGO PERTO EU NÃO QUERO, EU NÃO SUPORTO O SEU CORPO AQUI, VAI EMBORA E VISTA-SE COMO VC DEVERIA ESTAR VESTID-A. 

O AMOR
Então...
Fui corajoso em tirar a blusa e ir de sunga mas na real me sinto mais corajoso de continuar dançando, voltar pra esse ambiente que me é tão hostil (e importante pra mim) foi muito desafiador.
Propor diálogos.
Ter paciência.
Escutar as limitações alheias, perceber as minhas. 
Me custou mais o depois que a adrenalina do momento.
Foi duro voltar a dançar.
Ia nas aulas e morria de tédio. 
Contato Improvisação não é academia, é diálogo entre os corpos, é cooperação. Aí quando não tem clima fica uó. 
No geral, hoje, não gosto de conhecer as pessoas com quem danço, dançar já é muita coisa. Prefiro danças casuais, faço a linha sexo de aplicativo -sem compromisso, por agora. 
Amo dançar, porque pra mim uma boa dança é estar presente, e isso é tudo, me basta. Além disso, aprendi a dançar comigo.
Danço sozinho, acho ótimo.
Aí nessa descobri o chão, o espaço, meu peso e uma dorzinha na virilha esquerda. Fui me amando, me cuidando e aos poucos me re-socializando.  
Nesse episódio teve raiva,  mas no desenrolar da vida teve amor também. 
A minha dança é pela vida, sou O Ariel Nobre, #transvivo.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

menos é mais


Recentemente fui convidado para dar uma aula de movimento e Contato Improvisação. Já tinha dado uma aula com um outro professor, mas sozinho foi a primeira vez. Foi muito massa, adorei. Eu planejei a aula, mas foi tudo bem diferente e achei isso incrível. Eu não conhecia muito bem o grupo e acho que a escuta de ambas as partes foi essencial pra todo mundo crescer.
É lindo ver como um exercício, uma proposta pode ser revolucionária na trajetória dos corpos. Fiquei XO-KI-TO! Essa experiência me deu mais vontade de continuar na minha trajetória. Ao mesmo tempo foi estranho me ouvir dizer clichês que sempre escutei: menos é mais, você é responsável por você…etc. Por outro lado, acho que ainda preciso escutar muito essas frases de sabedoria até entrar mesmo, nas vísceras e nos ossos.
Irmãs e irmãos, quão linda é essa prática que nos dispomos a aprender? Com ela aprendi a me perceber, a me escutar, e assim me relacionar melhor com o mundo. Outro dia, estava refletindo sobre minha vida professional e vi o quanto de energia invisto em Contato Improvisação. A princípio me assustou, mas dois segundos depois fiquei bem ok. Afinal, é o que eu mais gosto de fazer na vida, o que me dá mais prazer. Não sei bem pra onde essas danças vão me levar, mas até agora eu estou adorando.
Assim, sendo sincero, acho que o mais difícil na pratica do CI – pra mim – é estar com pessoas. CI não é uma atividade que dá pra fazer do home-office, né minha gente. O estigma da transexualidade foi me fazendo assim, sem paciência com o planeta, com as pessoas. Morro de preguiça da vida social. É difícil ter que se explicar sempre, ser o assunto toda vez que você chega. Dá preguiça. Você chega na rodinha e o papo muda. É claro que é importante falar sobre gênero, mas assim, às vezes eu só quero almoçar. Quando eu vejo já estou palestrando. Ai gente, minha hora é cara, olha no google. Digita lá: TRANSGENERO e eduque-se, a ignorância é sua queridinha, melhore.  Uma vez uma bicha veio falar comigo por algum chat da vida, como axey ela gata dei trela pro boy, um minuto depois estava eu dando uma aulinha sobre o que é ser trans, transviado etc. Gente, é muito chato.
Mas ok é isso. Talvez mude daqui duas gerações, já aceitei que é o que tem pra hoje e tento lidar da melhor forma possível. O CI é fundamental pra isso, ele me ajuda a ACEITAR. Aceitar a gravidade, o meu peso, minhas genitais, meu corpo, o peso dos orgãos, minhas decisões até aqui, minha trajetória e assim vamos.  Tem um monte de coisa estúpida sendo dita por aí, sendo dita há muito tempo. Essas narrativas limitadoras nos cegam a ponto de nos fazer acreditar que quem nasce com piruzinho gosta de azul, e pior, gosta de azul “naturalmente”. Exorcizar essa burrice dos nossos corpos é uma tarefa cotidiana. A minha condição, e a dos meus iguais, é vista como transtorno, AINDA. É barra encontrar trabalho, é barra a relação com a família, é barra ir ao banheiro público, enfim, é barra o convívio social.
Você consegue se colocar no meu lugar? É chato “ser demais” pra pessoas que amamos, sabe? Tipo, uma condição humana que deve ser explicada. É uma tristeza sem fim perceber que pessoas não querem sentar ao meu lado no ônibus, ou que uma pessoa que você ama não consegue te tratar com o pronome que você se sente bem, como se fosse “demais” pra ela, é “difícil”, e claro, “temos que entender”.
Meus problemas foram ficando mais cabeludos na medida que eu aceito minha transição. Aí quando eu vejo a condição de outros irmãos e irmãs nem sei o que fazer, me vem um aperto por dentro. As notícias podem ser bem tristes…estamos sendo expulsos de casa, exorcizados pela igreja creyzy fundamentalista, espancados e assim vai. Me sinto privilegiado e faço o que posso pra que nossos corpos dancem com mais dignidade.
Por essas e outras, acordo e levanto. Quando uma criança chata me pergunta “você é menino ou menina”, respiro; quando alguém me pergunta  “  o que é trans “, respiro de novo,  “como é seu nome verdadeiro?”, inspira, expira e vamos lá.
Vamos lá, vamos dançar, menos é mais, e nunca se esqueça, Ariel, você é responsável por você.


domingo, 28 de junho de 2015

Uma Jam em Stonewall

I
Hoje faz 46 anos que umas sapatão, travesti e bicha resolveram não aceitar serem presos por serem quem são. O bafão aconteceu lá em Nova York. Na época os "atos homossexuais” eram proibidos por lá e a polícia ficava vigiando o cu da galera. Numa dessas invadiram o bar STONEWALL INN mas aí uma sapatão começou a revidar, as travestis do recinto foram ajudar, as bichas começaram a gritar e foi o maior barraco. Pouco tempo depois começaram as marchas do orgulho LGBT nos Estados Unidos e depois do mundo inteiro.
#valeumigas

II
Um dia desses fui fazer uma aula em um lugar novo onde estou temporariamente vivendo. A cidade é média, no interior e muito tradicional. Fui andando, não era muito longe. No caminho encontrei pichações de ódio contra travestis. Fiquei com medo. Essa cidade é muito violenta com LGBTs. Quase chegando no lugar um homem começou a me seguir e a fazer perguntas incômodas e violentas. Cheguei ofegante no local e perguntei para qualquer pessoa: 
     -Agora é a aula de Contato Improvisação?
     -Que? não, é Kung Fu.
Sabia que a porra da aula era de Contato Improvisação, mas não queria mais nada naquela noite, nada. Não queria ver gente na minha frente. Voltei pra casa com ódio do mundo. Me senti péssimo. Porque isso? Fiquei pensando em quantas outras pessoas passam o que eu passei. Essa sensação é péssima. Muitas vezes me sinto como aquelas sapas e bichas de Stonewall: revoltadas por terem o cu vigiado, as genitais investigadas. 
Por sorte voltei ao mesmo lugar alguns dias depois e finalmente dancei. Mas a minha sorte não parou por aí, as pessoas me chamaram pelo meu nome e me trataram no masculino como gosto de ser tratado. Dancei e continuo dançando. Me senti muito feliz e grato à vida. Fui bem recebido, bem tratado, respeitado. Boas danças, tempo bom.

III
Sabe, tem um monte de gente sofrendo coisas horríveis só por serem quem são. Essa violência atua em camadas, é cruel. Por vezes não consigo me explicar. Muitas  pessoas não tem idéia de como é a vida de pessoas transexuais, dá preguiça de explicar, tem que desenhar, e repetir, repetir, repetir. Faço parte de uma geração de transexuais pioneiros que estão se declarando Trans ainda jovens e vivendo fora do armário. É tudo novo para todo mundo. As pessoas se espantam com nossos corpos como se nossa existência fosse um acontecimento, e de fato é. Porém todo esse pioneirismo cansa e tem uma alto preço, eu só consigo lidar em sã consciência se praticar Contato Improvisação.
O mundo gira, as pessoas mudam e devo admitir que conquisto cada vez mais espaço. Quando uma pessoa me chama pelo pronome certo, mesmo não fazendo mais que a obrigação, lembro que a vida já foi diferente, lembro do armário, como era triste lá dentro, feio e sem graça. As vezes sou violento e não tenho a menor paciência em “dar palestra” para desconhecidos ou dizer como me sinto porque isso me toma muita energia e por mais sincero que seja essa comunicação muitas vezes não chega na outra pessoa. 
Tenho uma teoria que é assim: nós temos pouca referências trans e isso dificulta a comunicação ( e a vida). Vamos lá, quantos amigos trans você tem? Quantos professores Trans você já teve? Médica travesti, alguém pode me indicar por favor? Pois é viado, é barra. Pra piorar o Brasil é o país que mais mata transexual no mundo, aliás 40% dos homicídios de ódio no planeta contra a população trans rola aqui no Brasil. 
Mas olha, cada dia que passa tenho mais orgulho.Não tenho orgulho desses números horríveis, todos inscritos no nosso corpo, mas tenho orgulho porque sigo em frente e não volto pro armário nem por um milhão de dólares. Tenho orgulho porque acordo todos os dias e levanto da cama, tenho orgulho porque mesmo violentado em muitos níveis sigo dançando. Tenho orgulho porque mesmo não tendo banheiro/vestiário pra mim me visto e faço minhas necessidades, as vezes na rua, mas faço. Mijo e mijo em pé. Tenho orgulho por ser uma referência para crianças machinhas que me olham na rua com tanta admiração, carinho e curiosidade. Tenho orgulho porque estou vivo em um país tão religioso no sentido fundamentalista crazy. Tenho orgulho porque saí do armário com pouquíssimas referências. Tenho orgulho de ocupar os espaços públicos mesmo sofrendo agressões. Tenho orgulho porque tive coragem de dizer a minha família religiosa aos 22 anos que sou sapatão. Tenho orgulho de praticar Contato Improvisação há três anos mesmo não me sentindo confortável em algumas situações. Tenho orgulho porque tive a coragem de mudar de nome. Tenho orgulho dos meus iguais que vivem em situações muito mais adversas que eu. Posso dizer que as minhas danças Transformaram a vergonha em orgulho. Portanto me sinto grato. Agradeço a todas as pessoas que dançaram comigo até hoje e as muitas que ainda vão dançar. Agradeço as pessoas que se sensibilizam com a minha causa, escritos e performances, aos corpos que se dispõe a aprender com as diferenças, xs professores, as alunas e os alunos, esses corpos moventes, todos lindos. O meu intuito é dançar até morrer, mas não é qualquer dança, as nossas espirais podem abrir ainda mais para a diversidade.

IV
Quero dizer com o corpo e com as palavras que existe amor em SP e no mundo inteiro. Tem ódio mas tem amor. Mesmo com muitas limitações, dos corpos e das palavras, estou encontrando acolhimento, comigo mesmo e com outras pessoas também.  

Com orgulho e gratidão, Ariel. 
28 de Junho, dia do orgulho LGBT

quinta-feira, 28 de maio de 2015

briga de espada



 Costumo usar esse espaço para falar sobre minhas experiência com o Contato Improvisação, mas recentemente tive uma dança Transformadora.  Um dos meus interesses no CI é desconstruir o gênero, por isso quero contar de uma dança que tive longe das Jams, mas que nunca teria acontecido se não fosse um contatero.
Resolvi me montar e performar em um evento que ajudo a construir  de forma colaborativa com outres sapatão, o Isoporzinho das Sapatão (https://goo.gl/12GSb9). Pra quem não sabe, esse é um dos únicos eventos sapatônicos da cidade do Rio de Janeiro. Bem, fui de cinta pau, uma calça justa preta, uma camiseta da #sapatãodamoda (https://goo.gl/CzqXbC) e um cachecol arco íris, sabia que ia tirar a camiseta em algum momento. Alias, esse ato não é qualquer ato. Quando faço isso tudo muda, os corpos ao redor mudam de posição e já começam outras danças, sou percebido de forma diferente, os olhares, os toques, quem fica longe e quem fica perto, as conversas, as pausas e os movimentos, por um momento, tudo fica suspenso como se alguém ousasse questionar o iquestionável, como duvidar de deus. 
 Todos os dias, todos os dias mesmo, eu recebo  olhares procurando minhas genitais. Quando eu digo meu nome, e que quero ser tratado no masculino os olhares escorregam quase que automaticamente para o meu peito e buceta. Os olhares procuram, investigam, furam minha roupa. Dizem que os genitais são partes íntimas, é o que dizem, mas se você acha isso, senta pra não cair, isso não é igual pra todo mundo. Sabe por que? Porquê quando as pessoas não conseguem te encaixotar em mulher de buceta ou homem com pau, já era, a cabeça vai bugar e os olhares vão se dar o direito de invadir, as perguntas indiscretas aparecem sem pudor como se você estivesse 100% disponível à curiosidade alheia, que te trata muitas vezes como a bizarrice do circo. 
 Bem, mas quero voltar a minha dança maravilhosa.
 Estava dançando, já era madrugada na Praça Tiradentes, o som estava bombando e as sapatão quebrando até o chão. Já estava no auge, muito bêbado, sem camiseta, de pau de plástico pra fora e dançando, ora sozinho ora com outras pessoas. Havia muitas pessoas Trans, adoro. Gosto de ver outros corpos trans em espaços público, isso é raro. Até que um grupo de caminhada decidida se aproxima do nosso, uma pessoa de passo firme lidera os trabalhos, seu passo é firme como se estivesse indo para uma guerra. Nenhum movimento dessa guerreira passava desapercebido. Ela chega e redistribui todos os outros corpos naquele espaço. Ela modificou todo o ambiente, tudo ficou, de repente com outra vibração.Os nossos corpos, o meu e o da guerreira, foram se aproximando por uma atração muito do momento que era ao mesmo tempo sofisticada e intensa. Começamos a dançar uma música que pelo visto ela gosta e com certeza foi sugerida por sua presença no recinto. Era madrugada e estava frio, mas o fogo que eu sinto quando estou  sem camiseta na rua vem da Terra, vem de baixo pra cima, por isso o frio não me atingia em nada, estava fervendo e parecia que ela também. Enquanto isso o funk rolando e nós ali de corpo inteiro gritando “É MINHA, A PORRA DA BUCETA È MINHA”, sem um pingo de pudor a guerreira dançarina tirou toda a roupa em praça pública, eu aceitei a sugestão e também tirei o resto da roupa que tinha. Dançamos, nos esfregamos, e de corpo inteiro ocupamos aquela praça, todas e todos nós. Aquela pessoa me desafiava a cada movimento, por um momento achei que estava dançando com alguém que não tivesse medo de nada, e por um tempo, talvez segundos dancei sem medo também. Me senti inteiro e ali, na praça pública, onde não sou bem vindo, dancei nu, celebrei minha vida, meu corpo. Lembrei que tenho lugar no mundo- pelo menos ali foi um lugar- por um momento, pleno.    
Sabe, as vezes preciso fazer isso, estar com meu corpo nu nos espaços públicos. É uma questão de cura, é o que eu posso fazer por mim, faço pra me salvar, faço porque quero viver. Todos os dias recebo olhares investigativos, punitivos, perguntas invasivas, sou expulso dos banheiros, qualquer formulário, ou pequenas burocracias do cotidiano vira uma tragédia grega. Ser Trans por aqui é barra. No fim das contas, eu só tenho eu, e eu sou corpo e corpo inteiro. Eu não sou uma aberração, mas parece que sou percebido como, quando tiro a roupa fica explícito, seja o que for pra quem vê, mas fica lá, presente. Tudo fica mais físico. 
Valete de paus, Rainha de paus, briga de espada, briga de aranha, eu pelado, ela pelada, e os nossos migs ali, em transe, fervendo, como em um ritual pagão convocando dias melhores para nossos iguais. Lembrando para nós mesmo que existimos, que não estamos sós e que queremos nossas danças em espaços públicos. É bom ter experiências como essa, porque eu estou cansado dos cantos, de me esconder, de me tapar, de fugir, de chorar, não dá, isso tudo fica no corpo passeando sem lugar. Nossos corpos estão sedentos por praça pública, por visibilidade, e por celebração. Somos carne, osso, pele e genital também, mas somos mais, bem mais.
As vezes, quando tudo vai mal, quando me sinto sem lugar no mundo, penso: Ariel tem local, é aqui, comigo, nesse corpo.
Querida pessoa Trans, que bom te ver viva! Nossas danças não cabem em armário nenhum e a melhor pista é a praça. 

domingo, 12 de abril de 2015

Me chamo Ariel


Recentemente mudei de nome. Dizendo assim, em uma única frase com quatro palavras parece um processo simples e rápido. Mas, obviamente, não está sendo. Transformações não tem data de início ou fim. Acontece, eu percebi e tento (me) aceitar da melhor forma possível. É como um chamado de coragem. Um dia depois do outro. 
Fiz um workshop recentemente no Rio de Janeiro. Como quase toda aula, foi ótima. Adoro aula de contato improvisação. Eram duas moças. Chegou o momento da roda de nome, disse Ariel, pela primeira vez. Eu fui a primeira pessoa a dizer o nome. Disse. Respirei e falei. “Me chamo Ariel”. 
Ultimamente estou acolhendo muitos tipos de reação em relação a minha condição TRANS. Não sei vocês, mas o CI me deu um (péssimo- as vezes) hábito de observar o corpo dos outros. Passeio por entre os corpos e sinto uma certa atração pelo meu - sinto repulsão também. Nessa atração tem elementos alegres e tristes. Tem curiosidade, vontade de saber de mim, preocupação comigo, cuidado. Devo dizer que a curiosidade me incomoda profundamente. Não se enganem, sou apenas um corpo com uns panos ao redor.
Estou evitando pronunciamentos e notas oficiais porque como disse anteriormente transformações, como todxs sabem, são processuais. Por mais que mudar o nome seja um marco, essa troca de pele, de roupa e de postura não começou ontem. Esse processo é muito libertador pra mim. A nossa sociedade impõe relações de gênero muito sufocantes e hoje a vida está me dando uma oportunidade de começar de novo, sabendo que outras pessoas como eu existem e resistem. Dançam pela terra, desde que gente é gente. 
 A minha presença denuncia uma série de relações de poder entre os corpos, e o meu convívio social sugere uma reflexão urgente sobre uma série de coisas. Essa paisagem social me permite uma solidão imensa. Por vezes o enfrentamento é inevitável, e como já cansei dessa política me afasto e evito problemas. 
As boas intenções escolhem palavras espalhafatosas e os olhares curiosos me enfurecem. Fico aqui e as pessoas lá. Sigo nesse solo mas estudando como quero estar, com quem posso dançar, conversar, me abrir. 
Em uma outra aula em São Paulo fizemos um rolamento e concluímos o seguinte: numa queda, principalmente, não podemos esquecer de onde viemos. Para seguir em uma determinada direção é melhor que não se esqueça de onde o corpo estava. Isso soa físico, filosófico, óbvio e até espiritual. Contateiras e contateros desse brasel, sabemos que para cair, rolar por aí e não se machucar essa informação ajuda bastante. (Se você, leitora ou leitor, está lendo esse texto e não entendeu essa parte por favor tente rolar no chão com essa informação, ou ainda, comece praticar CI com a gente ;) ). 
As vezes acho que Ariel é uma criança que quer aprender tudo, as vezes acho que é um adulto semi analfabeto e estabanado com as pessoas. É um vetor louco por vida. Quer acontecer e celebrar a vida, amar, e claro dançar…. ah… querides, como serão nossas danças? Sugiro escuta e respeito, e isso é muito. E não se enganem, digo isso pra mim também, principalmente, alias. 
Gosto de pensar que a vida é maravilhosa.  Mistérios acontecem independente da minha existência. As geleiras derretem. A terra gira e o metrô fica lotado nos mesmos horários desde sempre. A gravidade está aí todos os dias. Os corpos se chamam por nomes dado por outros corpos.
A busca pela dignidade dos nossos corpos  é um processo coletivo. 

Aliás, muito prazer, me chamo Ariel, e desejo ser tratado no masculino. 

domingo, 8 de março de 2015

revolução inicial

Oi genty!

Criei esse blog para compartilhar com quem interessar minhas experiências com o Contato Improvisação. Quando fiz minha primeira aula de Contato Improvisação em 2013 com a professora Sofia Giliberti em Santa Teresa na cidade do Rio de Janeiro, me apaixonei instantaneamente pela prática. Foi assim que começou minha jornada, o início de muitas TRANSformações que desejo compartilhar com vocês.

Nunca esqueci minha primeira aula, foi assim com vocês também?

Começamos deitados em silêncio, entregando o peso pra Terra, respirando. Tudo isso era novo pra mim, na verdade continua sendo, mas naquele momento também era inédito. Depois alguém (imagino que seja a professora) colocou uma bolsa de água no centro gravitacional do nosso corpo, o tal "centro". E a partir daí fomos pesquisando e deixando a conexão "agua de dentro/água de fora" acontecer. A fluidez da água é incrível. O óbvio se revelou: somos 70% água. Porém as durezas da vida se instalam nos corpos e dificultam essa fluidez dos nossos líquidos. Mágoa vem de "má-água". loco, né.

Lembro que estava passando por um término de relação de 3 anos, um casamento que achava que iria durar para TODO O SEMPRE. O luto passeava devagar pelo meu corpo. Estava achando os movimentos da vida simplesmente um TÉDIO. Cansada das mesmas posições: sentar, levantar, andar de um ponto ao outro. Queria outros movimentos, moveres menos pré-determinado, mais improvisado. Quando vi aquelas pessoas (aparentemente) desinteressadas em feio/bonito, certo/errado fiquei muito feliz. A beleza me dá um téeeeeeeedddi. Não consigo nem terminar de escrever.

Foi meu início de caminhar, pular, cair, levantar, rolar, juntar dinheiro para festivais, e muitos outros movimentos. Uma revolução. Vale lembrar, que essa aula foi em Junho de 2013. Nesse período houve uma série de manifestações populares no Rio de Janeiro. Da nossa sala de dança, as vezes, dava pra escutar as bombas de gás usadas pela polícia no centro da cidade nos dias mais intensos. Mesmo me identificando com as pautas das manifestações não conseguia ocupar as ruas, devido ao enfrentamento dos corpos e toda a violência gratuita proporcionada pela polícia brasileira. Porém, percebi que meu corpo pedia uma revolução muito mais profunda do que mandar políticos corruptos TOMAR NO CU ( se é tão bom tomar no cú por que é um xingamento? RESPOSTA: homofobia). Precisava de outras perguntas, precisava de menos certezas. Naquela sala de aula encontrei silêncio, e também um certo vazio sem compromisso de ser preenchido, e claro, outros corpos interessados em cooperar. Essa sensação me alimentou e decidi voltar na semana próxima.

O rolar daquela bolsa de água me sugeriu movimentos mais fluidos e processuais.

Um abraço e uma beyja.
#contateirx